O Excelentíssimo Desembargador Federal JOÃO CONSOLIM (Relator):
Trata-se de agravo interno, previsto no artigo 1.021 do CPC, interposto pelo INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS em face da decisão monocrática que deu provimento à apelação da parte autora.
O objeto recursal cinge-se à pretensa necessidade de devolução dos valores recebidos em antecipação dos efeitos da tutela, posteriormente modificada, nos termos do que preceitua o Tema STJ 692.
Da tempestividade do recurso
Não se vislumbra, no caso em tela, hipótese de intempestividade recursal.
Da devolução de valores recebidos em decorrência de revogação de tutela ou liminar (Tema 692 do STJ)
Por meio de decisão por maioria, em apertada votação (4X3), o colendo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp n. 1.401.560/MT, em sistemática de recurso repetitivo (Tema 692), firmou a seguinte tese:
"A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago."
O voto condutor, de autoria do Ministro Ari Pargendler, teve como fundamento o teor do artigo 115, inciso II, da Lei n. 8.213/1991. O Ministro Herman Benjamin, acompanhando o relator, em seu voto acrescentou que não se aplicaria ao presente caso a irrepetibilidade dos alimentos, usada para justificar a não devolução nas ações rescisórias, uma vez que enquanto nestas últimas a decisão cassada é definitiva, no caso da tutela a decisão é provisória. Ainda, fundamentou no fato de que, embora o segurado tenha boa-fé subjetiva no recebimento da tutela, ele tinha conhecimento da sua precariedade, faltando-lhe, portanto, a boa-fé objetiva. E, finalmente, justificando que "o caráter alimentar dos benefícios previdenciários está indissociavelmente ligado ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana" e que "O princípio da dignidade da pessoa humana, na sua dimensão objetiva, visa garantir um contexto adequado à subsistência do indivíduo", propôs a limitação de desconto mensal a 10% da renda do benefício.
No voto-vencido, o Ministro Sérgio Kukina ressaltou a finalidade de proteção social da norma previdenciária e que o referido artigo 115, inciso II, da Lei n. 8.213/1991 (em sua redação originária), não previa a hipótese de desconto de valores recebidos por força de tutela revogada e reforçou a aplicabilidade do princípio da irrepetibilidade diante do caráter alimentar e da boa-fé objetiva que o segurado tem ao supor que o magistrado, ao deferir a antecipação, em observância dos fins sociais da Previdência, não lhe sujeitaria à devolução de valores. O Ministro Arnaldo Esteves Lima salientou que o entendimento da devolução esvaziaria a missão do instituto da tutela. O Ministro Napoleão Nunes acrescentou que a tutela difere de uma medida cautelar, porquanto ela é uma decisão com eficácia plena, total e absoluta enquanto ela vigorar, razão pela qual não seria possível alegar a sua precariedade, bem como a "injustiça" discriminatória quando a Fazenda desobriga o pagamento de imposto nos crimes de descaminho e contrabando em valores de até R$ 10.000,00, considerando-se como bagatela, enquanto exige-se do segurado, que recebe valores menores, a devolução.
Como bem salientado pelo Ministro Herman Benjamin, "o caráter alimentar dos benefícios previdenciários está indissociavelmente ligado ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana" e "O princípio da dignidade da pessoa humana, na sua dimensão objetiva, visa garantir um contexto adequado à subsistência do indivíduo".
Posteriormente, proposta revisão de entendimento firmado, em sessão realizada em 9.10.2024, a Primeira Seção acolheu parcialmente os embargos de declaração nos autos Pet 12482/DF, em voto da Relatoria do Ministro Afrânio Vilela, para complementar a tese jurídica firmada, ficando da seguinte forma:
"A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos, na forma do art. 520, II, do CPC/2015 (art. 475-O, II, do CPC/73)."
A revisão de entendimento foi apenas para complementar a tese jurídica em decorrência da nova redação dada pela Lei n. 13.846/2019 ao inciso II do artigo 115 da Lei n. 8.213/1991. Contudo, essa revisão realizada pelo colendo Superior Tribunal de Justiça não infirma os fundamentos da decisão recorrida.
Nesse contexto, o referido princípio da dignidade da pessoa, mormente a necessidade de os Estados garantirem meios de subsistência do indivíduo, pode ser extraído dos artigos 7º, 9º e 11 do "Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais", do qual o Brasil é signatário e foi promulgado por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992, "in verbis":
"PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
PREÂMBULO
Os Estados Partes do presente Pacto,
Considerando que, em conformidade com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana,
Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos,
Considerando que a Carta das Nações Unidas impõe aos Estados a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades do homem,
Compreendendo que o indivíduo, por ter deveres para com seus semelhantes e para com a coletividade a que pertence, tem a obrigação de lutar pela promoção e observância dos direitos reconhecidos no presente Pacto,
Acordam o seguinte:
(Omissis)
ARTIGO 7º
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente:
a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores:
i) Um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles por trabalho igual;
ii) Uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto;
b) À segurança e a higiene no trabalho;
c) Igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo de trabalho e capacidade;
d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feridos.
(Omissis)
ARTIGO 9º
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social."
(Omissis)
ARTIGO 11
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento."
(Grifei)
Sendo assim, como a tutela foi concedida especialmente para garantir a subsistência do segurado, trata-se de garantia também decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, como bem salientado pelo eminente Ministro Herman Benjamin.
A referida garantia decorre de norma prevista no "Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais", do qual o Brasil é signatário, aprovado pelo Congresso Nacional com votação da maioria simples e promulgado por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992.
Dessa forma, conforme entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 95.967 e RE 466.343, trata-se de norma supralegal, como segue:
"A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da CF/1988, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação." (Grifei)
"Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada." (Grifei)
De outro lado, como defendido no voto condutor que definiu o Tema 692, e pelo INSS, a necessidade de devolução dos valores recebidos por força de tutela revogada estaria amparada apenas no artigo 520, inciso I e II, do CPC (correspondente ao artigo 475-O, inciso I, do CPC de 1973) e no artigo 115, inciso II e §1º, da Lei n. 8.213/1991. E ainda que se possa invocar violação a outros dispositivos legais vigentes, como os artigos 296, 297, parágrafo único, 300, § 3º, 302, incisos I e II, 927, inciso III, todos do Código de Processo Civil, o artigo 154 do Decreto 3.048/1999 e artigos 876, 884 e 885 do Código Civil, todos eles possuem "status" de normas infraconstitucionais, em posição hierárquica inferior à das normas supralegais.
Destarte, o caso revela um aparente conflito de normas, que não foi compreendido nas discussões que ensejaram as decisões da colenda Corte Superior.
Dessa forma, cabe anotar que em nenhum dos casos houve a análise pelo prisma da hierarquia da norma supralegal sobre a norma ordinária.
Frisa-se que o inciso III do artigo 105 da Constituição da República trata da competência do Superior Tribunal de Justiça para dirimir o conflito entre os julgados recorridos em face dos tratados ou da lei federal, enquanto que a competência para dirimir aparente conflito entre a lei federal e o tratado internacional recepcionado com "status" de norma supralegal, como o relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, é da competência do excelso Supremo Tribunal Federal, conforme entendimento fixado no julgamento do HC 95.967 e RE 466.343, afastando a aplicação do entendimento firmado no ARE 722.421.
Assim, tratando-se de "distinguishing", eventuais alegações de violação ao disposto no inciso III do artigo 927, 932, 948 e 949, todos do Código de Processo Civil e ao artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil também não prosperam, porquanto, "a contrario sensu" do teor do §1º do artigo 489 do Código de Processo Civil, inexiste omissão quando demonstrada a existência de distinção que permita deixar de seguir enunciado de Súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte.
Portanto, deve prevalecer o posicionamento de não devolução dos valores recebidos pelo segurado em decorrência da revogação da tutela, de acordo com o seguinte julgado do excelso Supremo Tribunal Federal:
"DIREITO PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. NATUREZA ALIMENTAR. RECEBIMENTO DE BOA-FÉ EM DECORRÊNCIA DE DECISÃO JUDICIAL. TUTELA ANTECIPADA REVOGADA. DEVOLUÇÃO.
1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já assentou que o benefício previdenciário recebido de boa-fé pelo segurado, em decorrência de decisão judicial, não está sujeito à repetição de indébito, em razão de seu caráter alimentar. Precedentes.
2. Decisão judicial que reconhece a impossibilidade de descontos dos valores indevidamente recebidos pelo segurado não implica declaração de inconstitucionalidade do art. 115 da Lei nº 8.213/1991. Precedentes.
3. Agravo regimental a que se nega provimento."
(ARE 734242 AgR, Relator(a): Ministro ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, Julgado: 4.8.2015, DJe: 4.9.2015)
Insta salientar que o Supremo Tribunal Federal vem mantendo seu entendimento no sentido da prevalência da irrepetibilidade das verbas alimentares recebidas, ainda que por força de antecipação de tutela posteriormente revogada, e mesmo após a fixação da Tese no Tema 692 do Superior Tribunal de Justiça.
Nesse sentido é a decisão prolatada pelo eminente Ministro Edson Fachin, em 19 de fevereiro de 2025, que reformou acórdão proferido por este egrégio Tribunal Regional Federal, que determinara a devolução de valores decorrentes da reforma da decisão que antecipou os efeitos da tutela final, com esteio no Tema 692 do STJ. Confiram-se os excertos pertinentes:
"Esta Suprema Corte perfilha o entendimento de que os benefícios previdenciários recebidos em virtude de decisão judicial não se sujeitam à devolução, ante o caráter alimentar da verba. Nesse sentido, colho, ilustrativamente:
(Omissis)
Do quadro fático delineado na origem, observa-se que o pronunciamento judicial de devolução dos valores representou ofensa aos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, os quais ganham especial realce em se tratando de benefícios previdenciários, considerada a natureza jurídica da previdência social como direito social e o caráter alimentar das verbas, destinadas ao sustento do segurado. Nesse raciocínio, constata-se que o entendimento adotado pela Corte de origem está dissonante da orientação jurisprudencial desta Corte. Ante o exposto, nos termos do art. 932, V, b, c/c art. 21, § 2º, RISTF, dou provimento ao recurso extraordinário para reformar o acórdão recorrido, assentando a irrepetibilidade das verbas alimentares recebidas."
(RE 1534635, Relator(a): Ministro EDSON FACHIN, Julgamento: 19.2.2025, Publicação: 20.2.2025, Trânsito em julgado: 23.4.2025, Grifei)
Do caso dos autos
Conforme mencionado anteriormente, o INSS alega que a parte autora deve devolver os valores recebidos em antecipação de tutela, pela aposentadoria por idade rural revogada, nos moldes estabelecidos pelo Tema STJ 692.
Primeiramente, é importante ressaltar que não há pedido nos autos de tutela antecipada formulado pela parte autora. Houve uma concessão de ofício pelo Juízo "a quo", de modo que a parte autora não pode ser responsabilizada na devolução em razão de medida "ultra petita" do Juízo.
A antecipação dos efeitos da tutela foram deferidos no bojo da sentença (Id 282357994), em 27.7.2023, que concedeu a aposentadoria por idade rural à parte autora. O documento de concessão (Id 282358010), de 15.8.2023, traz a DIB/DER em 27.9.2022 e a DIP (data de início do pagamento) em 1º.7.2023.
Posteriormente, com o documento de retificação, houve alteração da DIB de 27.9.2022 para 26.4.2023, em decorrência de determinação deste Juízo, com o cumprimento da decisão judicial (Id 335317540) e a revisão do benefício de aposentadoria por idade sob n. 41/209.216.256-4 para alteração da espécie do benefício de aposentadoria por idade rural para aposentadoria por idade na modalidade híbrida e alteração da DIB de 27.9.2022 para 26.4.2023. A renda mensal inicial foi alterada de R$ 1.212,00 para R$ 1.910,75 e a renda mensal atual de R$ 1.518,00 para R$ 2.037,72.
Em que pese a alegação por parte do INSS de que há mácula ao entendimento exposto no Tema STJ 692, isto não procede, uma vez que há decisão recente do Supremo Tribunal Federal (RE 1534635, Relator(a): Ministro EDSON FACHIN, Julgamento: 19.2.2025, Publicação: 20.2.2025, Trânsito em julgado: 23.4.2025) que ampara a boa-fé da parte autora no recebimento de parcela alimentar com chancela de decisão judicial, mesmo que no curso do processo. Com ainda maior razão, no presente caso, em que a decisão foi "ultra petita" e ficou comprovado o direito da parte a benefício mais vantajoso (aposentadoria por idade híbrida), com renda mensal superior, ainda que tenha data de início posterior.
Ademais, tanto o INSS quanto o Poder Judiciário devem observar, na aplicação da legislação de regência da previdência social, que, diante de uma análise técnica, seja proporcionado o melhor benefício ao segurado. Outrossim, na decisão monocrática, ora atacada, houve o cuidado de não haver o pagamento em duplicidade nos períodos em que a parte já estava recebendo o benefício de aposentadoria por idade (rural), conforme demonstra o excerto abaixo:
"Contudo, os valores recebidos a partir de 26.4.2023 pela aposentadoria por idade rural revogada devem ser compensados com os valores devidos pela aposentadoria por idade na modalidade híbrida, sem gerar resultado negativo em cada competência, para que não haja duplicidade nas prestações, nos termos do Tema STJ n. 1.207."
Destarte, havendo boa-fé pela parte autora no recebimento de verba alimentar decorrente de benefício previdenciário posteriormente alterado, não há motivo para a devolução dos valores.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo interno do INSS, nos termos da fundamentação.
É o voto.