
8ª Turma
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5079222-43.2024.4.03.9999
RELATOR: Gab. 27 - DES. FED. THEREZINHA CAZERTA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: RENAN HENRIQUE DA SILVA
Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5079222-43.2024.4.03.9999
RELATOR: Gab. 27 - DES. FED. THEREZINHA CAZERTA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: RENAN HENRIQUE DA SILVA
Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A
OUTROS PARTICIPANTES:
R E L A T Ó R I O
Trata-se de demanda objetivando a concessão de benefício assistencial, previsto no art. 203, inciso V, da Constituição da República.
O Juízo a quo julgou improcedente a ação proposta em face do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.
Sem contrarrazões, subiram os autos a esta Egrégia Corte.
A Procuradoria Regional da República da 3.ª Região, em seu parecer, opinou pela nulidade de todos os atos decisórios, devolvendo-se os presentes autos ao Juízo a quo, abrindo-se vista para que seja oportunizado ao órgão ministerial de primeira instância o oferecimento de parecer, tendo em vista patente o prejuízo à parte ante a sentença de improcedência.
Proferida decisão monocrática anulando a sentença, determinando o retorno dos autos ao Juízo de origem para instrução processual com a intervenção do MPF em primeiro grau.
O juízo a quo julgou procedente o pedido formulado, reconhecendo à parte autora o direito ao amparo pretendido e concedeu a antecipação da tutela.
O INSS apela, pleiteando a reforma da sentença, sustentando, em síntese, o não cumprimento do requisito da miserabilidade.
Sem contrarrazões, subiram os autos.
Parecer do Ministério Público Federal pelo desprovimento do recurso do INSS.
É o relatório.
THEREZINHA CAZERTA
Desembargadora Federal Relatora
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5079222-43.2024.4.03.9999
RELATOR: Gab. 27 - DES. FED. THEREZINHA CAZERTA
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: RENAN HENRIQUE DA SILVA
Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
Tempestivo o recurso e presentes os demais requisitos de admissibilidade, passa-se ao exame da insurgência propriamente dita, considerando-se a matéria objeto de devolução.
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL (PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA)
O benefício de prestação continuada é “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”, conforme disposto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, e regulamentado pelos arts. 20 a 21-A, da Lei n.º 8.742/1993.
A legislação exige a presença cumulativa de dois requisitos para a concessão do benefício.
Primeiro, o requerente deve, alternativamente, ter idade igual ou superior a 65 anos (art. 20, caput, da Lei n.º 8.742/1993) ou ser deficiente, isto é, deter “impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 20, § 2.º).
Segundo, o beneficiário deve comprovar situação de miserabilidade, caracterizada pela inexistência de condições econômicas para prover o próprio sustento ou tê-lo provido por alguém da família, consoante art. 20, § 3.º., da Lei n.º 8.742/1993 – dispositivo objeto de declaração parcial de inconstitucionalidade, pela qual firmou o Supremo Tribunal Federal que “sob o ângulo da regra geral, deve prevalecer o critério fixado pelo legislador no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93”, mas “ante razões excepcionais devidamente comprovadas, é dado ao intérprete do Direito constatar que a aplicação da lei à situação concreta conduz à inconstitucionalidade, presente o parâmetro material da Carta da República, qual seja, a miserabilidade, assim frustrando os princípios observáveis – solidariedade, dignidade, erradicação da pobreza, assistência aos desemparados” sendo que “em tais casos, pode o Juízo superar a norma legal sem declará-la inconstitucional, tornando prevalecentes os ditames constitucionais” (STF, Plenário, RE n.º 567.985, Rel. p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, 2.10.2013).
De se ressaltar, a esse respeito, que a redação original do art. 20, 3.º, da Lei n.º 8.742/1993, dispunha que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo”.
O dispositivo em questão foi, entretanto, objeto de recentíssimas modificações.
Primeiro, a Lei n.º 13.981, de 24 de março de 2020, alterou o limite da renda mensal per capita para “1/2 (meio) salário mínimo)”.
Depois, a Lei n.º 13.982, de 2 de abril de 2020, tencionou incluir dois incisos no dispositivo em epígrafe, fixando o limite anterior de 1/4 do salário mínimo até 31 de dezembro de 2020, incidindo, a partir de 1.º de janeiro de 2021, o novo teto, de 1/2 salário mínimo – aspecto este que restou, porém, vetado.
Dessa forma, permanecem, no momento, hígidos tanto o critério da redação original do art. 20, 3.º. da Lei n.º 8.742/1993, quanto a interpretação jurisdicional no sentido de flexibilizá-lo nas estritas hipóteses em que a miserabilidade possa ser aferida a partir de outros elementos comprovados nos autos.
DO CASO DOS AUTOS
O laudo médico pericial Id. 293511101 informa que a parte autora, 28 anos, passou por paralisia cerebral no nascimento, e apresenta quadro de sequela permanente motora importante nos membros inferiores, mantendo a capacidade de deambulação com andador, força diminuída nas pernas e equilíbrio prejudicado. Portador da seguinte patologia CID10: R26 - Anormalidades da marcha e da mobilidade.
Discorre o Sr. Perito: “Autor relata ter concluído o segundo grau no EJA, nega capacitação técnica ou superior, autor relata saber ler escrever, apresenta boa capacidade de audição e fala, com respostas coerentes assertivas. Autor nega uso de fraldas sondas, ou cateter, nega uso de prótese órteses. Autor relata capacidade de se higienizar, se vestir, e se alimentar sem auxílio de terceiros, relata ter facebook instagram, zap. Relata fazer fisioterapia estando parado no momento. Nega uso de remédio. Nega outras patologias. Nega tabagismo.”
E concluí “mediante avaliação autor é portador de deficiência físico com limitações em membros inferiores, mantendo condições físicas, psíquica e mental, para executar tarefas que não exija a utilização dos membros inferiores, sendo constatada incapacidade parcial, estando preservada a capacidade para atividades habituais, podendo disputar vagas de trabalho ou concursos disponíveis para deficientes físicos. (...) Sendo assim finalizo essa discussão e concluo que o autor Sr. Renan Henrique da Silva, apresenta incapacidade física parcial, não sendo constato incapacidade para atividades habituais do lar.”
No mais, depreende-se dos autos que o requerente sabe ler e escrever, tem boa capacidade de audição e fala, tendo concluído o segundo grau, ausentes indicativos de que não pode exercer atividade laborativa ou mesmo se adequar a um tipo de ocupação profissional.
O quadro apresentado, portanto, não se ajusta ao de impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial exigido pelo diploma legal a que se fez menção acima.
Quanto ao requisito da miserabilidade, de acordo com o estudo social Id.293511100, realizado em 31/08/2020, a parte autora reside em imóvel próprio, em estado regular de conservação.
As despesas do núcleo familiar, segundo relatado, totalizam R$1.990,00.
Quanto à renda familiar, consta nos autos que o genitor da parte autora percebe, mensalmente, R$1.800,00, pela aposentadoria por invalidez. O INSS em contestação apresenta consulta ao sistema CNIS, o valor de R$ 2.186,17 (01/2021).
Ademais, residia com a parte autora sua genitora, o qual não percebia quaisquer rendimentos, porém foi juntada a certidão de óbito, data de falecimento em 18/07/2021.
Cabe considerar, a esse respeito, que os valores percebidos pelo pai da parte autora, no mais das vezes, devem ser desconsiderados para o cômputo da renda familiar até o limite de um salário mínimo, uma vez que, tratando-se de benefício previdenciário, incide a aplicação analógica do art. 34, parágrafo único, da Lei n.º 10.741/2003, nos termos fixados pelo Supremo Tribunal Federal no RE n.º 580.963 (STF, Plenário, Rel. Min. Gilmar Mendes, 14.11.2013), depois objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática dos recursos repetitivos, no REsp n.º 1.355.052/SP (STJ, Primeira Seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 5.11.2015).
Nada obstante, e parafraseando o entendimento consignado pela Excelentíssima Senhora Desembargadora Federal Daldice no âmbito da Apelação Cível de registro n.º 6078022-57.2019.4.03.9999, trazida a julgamento em 18/3/2020, “a despeito do teor do RE n. 580.963 (STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n. 225, 14/11/2013 – repercussão geral), não há que se falar em hipossuficiência no caso”, como consignado até mesmo pelo magistrado sentenciante, notadamente quando os elementos de prova estão a indicar a ausência de penúria, revelando, ao contrário, que a parte autora tem acesso aos mínimos sociais, inclusive casa própria.
Ademais, “se o critério da baixa renda não é ‘taxativo’, pode ser levado em conta tanto para a concessão quanto para o indeferimento do pleito”.
Por isso que “a regra contida no § 3º do artigo 20 da LOAS não pode ser reduzida ao critério matemático, cabendo a aferição individual da situação socioeconômica”.
Veja-se, quanto ao mais, do voto proferido por Sua Excelência no feito acima mencionado:
“(...) diante do entendimento consagrado por ocasião do julgamento do RE n. 580963, abriu-se a possibilidade de exclusão, do cálculo da renda familiar, dos benefícios assistenciais recebidos por idosos e por deficientes e também dos benefícios previdenciários concedidos ao idoso, no valor de até um salário mínimo.
A decisão concluiu, ainda, que a mera interpretação gramatical do preceito, por si só, pode resultar no indeferimento da prestação assistencial em casos nos quais, embora o limite legal de renda per capita seja ultrapassado, evidencia-se um quadro de notória hipossuficiência econômica.
Essa insuficiência da regra decorre não apenas das modificações fáticas (políticas, econômicas e sociais), mas principalmente das alterações legislativas que ocorreram no País desde a edição da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993.
A legislação federal recente, por exemplo, reiterada pela adoção de vários programas assistenciais destinados a famílias carentes, considera pobres aqueles que possuem renda mensal per capita de até meio salário mínimo (nesse sentido, a Lei n. 9.533, de 10/12/1997, regulamentada pelos Decretos n. 2.609/1998 e 2.728/1999, as Portarias n. 458 e 879, de 03/12/2001, da Secretaria da Assistência Social, o Decreto n. 4.102/2002, a Lei n. 10.689/2003, criadora do Programa Nacional de Acesso à Alimentação).
Assim, não há como considerar o critério previsto no artigo 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993 como absoluto e único para aferição da situação de miserabilidade, até porque o próprio Estado Brasileiro elegeu outros parâmetros, como os defluentes da legislação acima citada.
Deve-se verificar, na questão in concreto, a ocorrência de situação de pobreza – entendida como a falta de recursos e de acesso ao mínimo existencial –, para se concluir se é devida ou não a prestação pecuniária da assistência social constitucionalmente prevista.
Assim, ao menos desde 14/11/2013 (RE n. 580963), o critério da miserabilidade contido no § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 não impede o julgador de levar em conta outros dados, a fim de identificar a situação de vida do idoso ou do deficiente, principalmente quando estiverem presentes peculiaridades, a exemplo de necessidades especiais com medicamentos ou com educação.
Nesse diapasão, podem-se estabelecer alguns parâmetros norteadores da análise individual de cada caso, como, por exemplo: (i) todos os que recebem renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo são miseráveis; (ii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo e inferior a ½ salário mínimo são miseráveis; (iii) nem todos os que percebem renda familiar per capita superior a ½ salário mínimo deixam de ser miseráveis; (iv) todos os que perceberem renda mensal familiar superior a um salário mínimo (artigo 7º, IV, da Constituição Federal) não são miseráveis.
Dessa forma, em todos os casos, outras circunstâncias devem ser levadas em conta, mormente se o patrimônio do requerente também se subsome à noção de hipossuficiência, devendo ser apurado se vive em casa própria, com ou sem ar condicionado, se possui veículo, telefones celulares, auxílio permanente de parentes ou de terceiros etc.
Cumpre salientar que o benefício de prestação continuada foi previsto, na impossibilidade de atender a um público maior, para socorrer aos desamparados (artigo 6º, caput, da CF), ou seja, àquelas pessoas que nem sequer teriam possibilidade de equacionar um orçamento doméstico, pelo fato de não terem renda ou de ser essa insignificante.”
Do exposto, constata-se que a parte autora reside com familiares em imóvel próprio, não havendo gasto com aluguel, denotando-se que o sustento do núcleo familiar é provido pelo genitor. Ademais, as despesas mencionadas não comprometem a totalidade do orçamento doméstico, e que, a despeito da condição simples de vida, não há desamparo nem abandono da parte autora.
Ressalte-se, a esse respeito, que o objetivo do benefício assistencial não é complementar a renda, mas fornecer o mínimo àqueles que vivem em situação verdadeiramente indigna, cuja precariedade coloca em risco a própria sobrevivência, exigindo-se, para tanto, a constatação de extrema vulnerabilidade – o que não é o caso dos autos.
O quadro apresentado, dessa forma, não se ajusta ao de miserabilidade exigido pelo diploma legal a que se fez menção acima.
De rigor, portanto, o indeferimento do benefício, porquanto não comprovado um dos requisitos indispensáveis à sua concessão.
Condeno a parte autora a pagar custas processuais e honorários de advogado, arbitrados em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, suspensa, porém, a exigibilidade, na forma do art. 98, § 3.º, do CPC, por se tratar de beneficiária de gratuidade da justiça.
Posto isso, dou provimento à apelação do INSS, para reformar a sentença e julgar improcedente o pedido formulado, cassando a tutela antecipada.
É o voto.
THEREZINHA CAZERTA
Desembargadora Federal Relatora
E M E N T A
PREVIDENCIÁRIO. ART. 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE IMPEDIMENTO DE LONGO PRAZO. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO AMPARO ASSISTENCIAL.
- O benefício de prestação continuada exige, para a sua concessão, que a parte comprove ter idade igual ou superior a 65 anos ou deter impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial (art. 20, caput e § 2.º, da Lei n.º 8.742/1993).
- A prova pericial produzida é insuficiente para demonstrar a existência de impedimento de longo prazo, apta a ensejar a concessão do benefício pleiteado.
- Reconhecimento da improcedência do pedido formulado.
ACÓRDÃO
DESEMBARGADORA FEDERAL